Campanha publicitária compara usuários de crack com zumbis e chamam os maiores canais do Youtube para promove-la.
Como soco na boca do estômago de todos os antiproibicionistas, eis que é lançado um “filme” (mais pra uma peça publicitária) que vai fazer todos se arrepiarem, mas não é pelo terror. Promovido principalmente pela Associação Parceria Contra Drogas (mas com a colaboração de diversas outras entidades) e produzido pela Master Roma Waiteman, o novo filme faz parte de uma campanha contra o uso do crack e tem uma qualidade visual digna de um oscar, não fosse pelo péssimo roteiro.
São 4m35s de puro alarmismo, desinformação, preconceito e má fé. Comparando os usuários de crack à zumbis, a história fictícia simula uma epidemia de um vírus mortal, que no caso é o uso do crack. Todos começam a ser “infectados” e destroem suas vidas. Os atores foram rigorosamente maquiados para ficarem com aspecto de um zumbi, que tem por unica finalidade fumar crack. O vídeo é basicamente feito dos depoimentos dos “zumbis”, envolvendo vários personagens diferentes. No final ainda dizem que os depoimentos são verídicos de usuários de crack reais, porém cabe à sua consciência acreditar em uma campanha publicitária ou não.
O impressionante e aterrorizante neste vídeo são as falácias, os preconceitos, o senso comum e a desinformação expressada. Pare para fazer uma breve analise, e perceberá que este é um dos maiores golpes já dados pelo proibicionismo no Brasil, mas na verdade um golpe de medo – como se fosse um animal acuado. Maior golpe no sentido de alcance e repercussão. Veja bem, nos últimos anos a tenologia se desenvolveu numa proporção jamais vista. Hoje qualquer um consegue rodar no celular um vídeo no Youtube, coisa que era um processo lento e demorado se feito de um PC há poucos anos atrás. As redes sociais viralizam a informação numa velocidade assombrosa. O senso comum predomina em todas as classes. Em um país onde a ignorância sobre as drogas e políticas alternativas representa 75% da população, um vídeo desse arrepia qualquer ativista antiproibicionista.
Mas também é possível sentir um tom de pânico dos proibicionistas. Em um momento em que vários países ao redor do mundo estão repensando suas políticas de drogas, eis que vem a turma do Osmar Terra, Laranjeira e companhia com essa inspiração artística. Isso é um claro temor de que o Brasil seja influenciado pelas alternativas gringas. Um exemplo desse temor é a viagem do próprio Osmar Terra pra pentelhar na política do nosso vizinho Uruguai. Suíça, Jamaica, Uruguai, México, Itália, Alemanha e Marrocos são alguns dos países que estão em processo de mudar suas políticas de drogas e as entidades da proibição brasileira logo trataram de tentar se prevenir. Assista ao vídeo e reflita por uns instantes:
Há tempos que se discute a necessidade de dinheiro e engajamento no ativismo pelo fim da proibição (seja da maconha ou qualquer droga), e este vídeo chega pra mostrar que realmente isso faz uma grande diferença. Não existe nenhuma produção semelhante feita pela Marcha da Maconha, por exemplo. Foi gasto um bom dinheiro pra que este vídeo fosse realizado, ou no mínimo engajamento no sentido de poder contar com a colaboração de fortes parceiros que possam ter viabilizado a produção – como a produtora O2 Filmes.
Mas talvez a melhor sacada deles tenha sido a colaboração dos principais canais do Youtube como o Mas Poxa Vida, 5inco Minutos e Paramaker para ajudar na divulgação e produção da campanha. Por volta das 5 horas da manhã de hoje, o vloger PC Siqueira subiu um vídeo em seu canal no Youtube, onde explica a campanha e a necessidade de se combater o crack. Talvez a intenção até tenha sido boa, mas como qualquer celebridade de massa, pouco entende do assunto e pecou por aliar-se ao lado negro da força.
O vídeo “Zombie – A Origem” é um projeto da agência Master Roma Waiteman foi veiculado em 60 salas de cinema, no Brasil, e em seguida viralizado pelas redes sociais. Foi postado no dia 29 de novembro (há seis dias) e já computa mais de 280 mil visualizações. A página do Facebook que teve sua primeira postagem no dia 16 de novembro, já tem mais de 15 mil seguidores. Esse número deve duplicar, ou triplicar nos próximos dias, com a ajuda da divulgação de PC Siqueira (que possui quase 1,5 milhão de inscritos em seu canal). A vloger Kéfera Buchmann, que tem mais de 2,5 milhões de inscritos já fez sua colaboração para o proibicionismo e também fez um vídeo apoiando a campanha. Na verdade essa é uma mobilização da Paramaker (antigo Parafernalha), que diz ter conseguido apoio de mais de 50 canais. Infelizmente esta foi uma flecha lançada da qual eles vão ter que amargar um certo arrependimento no futuro.
Diferentemente Cauê Moura, outro famoso vloger, que fez um vídeo excepcional falando sobre a maconha e seus mitos, esses canais se deixaram levar pelo senso comum e deram um belo tiro no pé. Um problema será se Cauê, seguir a empolgação de os canais e vlogers (o que parece que está pra acontecer), e também fizer um vídeo de apoio para a campanha e postar em seu canal com 2,4 milhões de inscritos.
A solução para a questão do crack esta na informação e regulamentação, campanhas de prevenção sim, mas tratamento de qualidade para usuários é fundamental também. As clínicas evangélicas estão no topo do negócio do crack, são talvez as que mais lucram ao lado dos traficantes. É como nosso amigo professor da Unicamp, Luís Fernando Tófili disse em um artigo do Estadão uns meses atrás:
“Ao contrário do que muitos acreditam, os consumidores de crack não são zumbis. Eles querem se tratar, têm desejos, apresentam uma trajetória de vida e problemas pessoais específicos. É o que mostram as respostas dadas na pesquisa nacional. Flexibilizar o estereótipo do consumidor foi importante, porque ajuda a compreender como o tratamento deve considerar a complexidade de cada um dos indivíduos submetidos a tratamento. Soluções em pacote, generalizantes, acabam dando pouco resultado.
Também é importante saber que 80% querem tratamento porque ajuda a desmontar o discurso dos que defendem a internação à força. O endurecimento das ações políticas, como mostra esse resultado, não faz nenhum sentido.
A concentração do consumo do crack no Nordeste levanta ainda outra questão. Será que existe, de fato, uma epidemia de crack? Ou, na verdade, ocorre uma epidemia de privação social? O crack é uma droga fortemente ligada à pobreza. O consumo pode revelar um agravamento do quadro social.”
O buraco é muito mais embaixo, os problemas na verdade não advêm do crack e sim de fatos vivenciados anteriormente pelos usuários. Abandono, descaso, problemas sociais e familiares, tudo isso contribui para que o crack seja encarado como uma válvula de escape para aqueles que assim desejam.
Uma mudança na atual política de drogas é a única solução do problema do crack. A regulamentação das drogas, a descriminalização do usuário, o fim de políticas de internação compulsória e tratamento de qualidade baseados em ciência e estudos científicos devem ser os pilares dessa solução. Pra quem não lembra, segundo um estudo da Unifesp, liderado pelo Dr. Dartiu Xavier, a maconha pode ser a porta de saída para o crack. Imagine o benefício para a causa, se esses canais todos resolvessem fazer um vídeo falando sobre esse estudo do professor Dartiu? A repercussão também seria fenomenal.
Vale lembrar que esse vídeo fala de crack, mas respinga demais na questão da maconha. A conexão entre crack e maconha é expressada de uma maneira muito mais forte do que entre o crack e a própria cocaína da qual ele é feito. Conte e verá que a palavra cocaína aparece duas vezes no vídeo, enquanto maconha é repetida três vezes. O garoto zumbi lança o jargão “Eu comecei na maconha…”; uma mulher zumbi repete exatamente a mesma frase “eu comecei fumando maconha” .. e depois “…até que eu conheci um namorado que me presentou o crack…”; por último tem um homem zumbi começando seu depoimento “Eu fumava maconha, só pra mim relaxar, até que um dia um traficante botou uma pedrinha dessa num bagulho que eu comprei”. Foram editados propositalmente como os três últimos depoimentos do vídeo, para dar a impressão de repetição e ficar fresco na memória do receptor.
É por conta de detalhes como esses, que precisamos ficar muito atentos à repercussão deste vídeo. Se for um sucesso, podem surgir novos episódios da saga ou novas celebridades podem querem promover a campanha, ou até mesmo pode ser exibida na televisão. Aqueles que desejam mudanças precisam se agilizar, fazendo parcerias certas e buscando investimento para campanhas de nível e alcance. Do contrário podemos ficar a mercê do proibicionismo e só ver o céu clarear quando os EUA concretizarem a sonhada legalização federal.
Se o senso comum continuar a ser lustrado com produções como esta, é certeza que continuaremos a viver tempos sombrios de um proibicionismo irracional e ignorante. Talvez os zumbis na verdade sejam eles, os proibicionistas.